“VOZES DE TCHENÓBIL” – UMA VOZ QUASE CÂNONICA
“Em 26 de abril de 1996, uma explosão seguida de incêndio na usina nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia – então parte da finada União Soviética –, provocou uma catástrofe sem precedentes em toda a era nuclear: uma quantidade imensa de partículas radioativas foi lançada na atmosfera da URSS e em boa parte da Europa” – trecho do livro “Vozes de Tchernóbil”, da jornalista e escritora Svetlana Aleksiévitch, publicado aqui no Brasil pela Companhia das Letras. É em meio a esse cenário, por sinal, bastante trágico, que a autora dá voz a uma legião de pessoas que sobreviveram a esse acidente nuclear de dimensões inimagináveis, por meio de uma escrita magistral, pois, ela não apenas faz como os jornalistas já fizeram - coletam informações, por meio de entrevistas e reúnem conteúdo suficiente para elaboração de um livro, cujo caráter é meramente informativo – pelo contrário, a autora, por meio de relatos de entrevistas com vítimas do acidente nuclear, mobiliza uma escrita não apenas descritiva, mas literária, uma vez que não se detêm a descrever fatos, mas relatar e testemunhar os acontecimentos, fazendo uso de um verdadeiro concerto de vozes – doloridas, conformadas, pungentes, revoltas – enfim, uma obra cujas dimensões se assemelham a potência dos grandes romances literários.
A obra apresenta uma organização tipicamente jornalística, com relatos de entrevistas sobrepostos um a um, no entanto, apresenta um Q.I. a mais, afinal, o modo como os relatos são descritos oferecem ao leitor a experiência viva com o ocorrido, pois, fazendo uso das entrevistas, a autora dá voz a sua obra, por sinal, muitas vozes, o que acaba por torná-la profundamente polifônica. Aliás, é justamente a presença da polifonia que acaba por distingui-la das demais obras do ramo, pois, a forma como os relatos são encadeados no livro, acaba por transformá-lo em um romance de múltiplas personagens, as quais estão, cada uma a seu modo, relatando suas experiências, suas angústias, suas visões do acidente que está intrinsicamente relacionado com suas vidas.
Entretanto, o seu maior diferencial, é que as personagens contidas a cada virada de página, não são fictícias, criadas de modo a caminhar para determinado rumo, por definição do autor que lhe concebeu literariamente, pelo contrário, são personagens reais, vítimas de um acidente nuclear. Se a obra possuí esse diferencial, isso se deve a um destino infeliz, ao qual tantas pessoas foram submetidas a viver. Aliás, os relatos presentes no livro, não se assemelham a uma obra literária já escrita, pois não faz uso da verossimilhança, da Mímese, no entanto, acaba por superar essas distinções quando mobiliza um coro de vozes, as quais relatam a realidade, não uma aproximação a essa realidade, ou uma realidade paralela muito bem construída, pelo contrário, é a realidade nua e crua a qual essas pessoas foram submetidas.
Em meio a todos esses fatores, destacam-se também o fator estético, afinal, a forma como os relatos são sobrepostos contribuem para criar um aspecto harmonioso, pois ao passar de cada capítulo, a cada relato, percebe-se que um está sempre complementando o outro, que eles dialogam entre si, que as personagens cujas vozes são mobilizadas na obra acabam por se sintonizarem em uma única frequência, aquela que está encarregada de contar um fato, mas é a forma como se conta que distingue este “contar”, uma vez que não “contam” simplesmente, mas “encantam” quem está disposto a ler, conseguindo arrancar suspiros de comoção, dor, tristeza e compaixão, e acima de tudo, possibilita viver e sentir-se parte da obra.
Sendo assim, não seria demasiadamente ingênuo considerar a obra como cânone literário, afinal, apresenta os aspectos linguísticos, estéticos, formais e informais, além de um tema de importante relevância, que acabam por atribuí-la um caráter canônico. Entretanto, resolvi recorrer aos primórdios, elucidando o significado de cânone, “é um termo que deriva do grego ‘kanón’, utilizado para designar uma vara que servia de referência como unidade de medida. Na Língua Portuguesa o termo adquiriu o significado geral de regra, preceito ou norma. Na literatura, é um conjunto de livros considerados como referência num determinado período, estilo ou cultura”. Partindo daí, temos que cânone é aquilo que serve de referência, desse modo, ousaria dizer que “Vozes de Tchernóbil” também se caracteriza como uma referência tanto de estilo, como de forma, uma vez que sua concepção passou por uma construção estética e linguística fantástica, pois ao mobilizar linguisticamente a polifonia, utiliza-se das vozes para se estruturar, e quando organiza harmoniosamente os relatos, acaba por estabelecer um equilíbrio estético, que beira a maestria, como um coro sendo regido por um maestro fenomenal. Aliás, referenciando essa comparação, podemos dizer que o coro é o livro, as vozes em sua individualidade é o som ecoado pelo coro, e o maestro é a autora, que impecavelmente concebe sua obra.
Por fim, ouso informar que, em 2015 esta mesma obra recebeu o prêmio Nobel de Literatura, devido ao aspecto semelhante ao de reportagens jornalísticas e a potência de grandes romances literários, considerado uma obra-prima do nosso tempo, pois, a obra refinou em uma escrita única a observação da realidade e ostentou as melhores qualidades narrativas da literatura contemporânea.
Victor Alexandre Silva, graduando em Letras: Português pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.
Fico feliz que você continue usando o nosso Blog, Victor! Compartilhe o texto nas redes sociais. Está bem articulado e lúcido.
ResponderExcluirDe fato, um acontecimento trágico de tamanha importância e que afetou a vida de tantas pessoas inocentes merecia um relato de igual impacto. O livro é tão eficaz em inserir o leitor no ambiente que era a Ucrânia Soviética de 1986, que serviu de base para a adaptação em minissérie da HBO, lançada em 2019. A série veio a se consolidar como uma das mais bem avaliadas de todos os tempos. Excelente resenha, pois apresenta os detalhes do livro de maneira eficaz a convencer o leitor a adquirir a obra.
ResponderExcluirParabéns pela clareza, lucidez e por tornar o livro atraente por meio de tua resenha. Realmente a obra será um cânone literário!!
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