Bom
dia, Verônica
Genialmente,
“Bom dia, Verônica” trata do despertar de mulheres. Despertar,
por sua vez, é “fazer sair do estado de torpor ou de inércia;
fazer readquirir ou readquirir força ou atividade; espertar.”
A
série inspirada no Livro, de mesmo nome, de Ilana Casoy e Raphael
Montes aborda o tema da violência contra a mulher e seus contornos.
Verônica
– não por acaso uma escrivã em uma delegacia de homicídios –
ao presenciar um suicídio de uma mulher visivelmente consternada,
decide investigar por si mesma o que a levou a cometer tal ato.
Descobre então que se trata de um caso de misoginia, em que um homem
seduz mulheres por um site de relacionamentos, as droga com uma
espécie de “boa noite, Cinderela” que deixa uma ferida nos
lábios e, quando acordam se dão conta de que foram furtadas e
enganadas.
Ao
tornar o caso público, Verônica, contraria seus superiores que
pretendiam “abafá-lo” para manter o “status quo”. Nesse
momento, fica evidente como a sociedade trata as mulheres: como seres
humanos de segunda categoria. Quando suas vidas não merecem atenção,
suas mortes não causam tanta comoção, suas historias não são
contadas e nem ouvidas.
Trazendo
à tona traumas do passado de Verônica, o responsável pela
delegacia intenta desestabilizá-la utilizando-se de uma forma de
abuso psicológico bastante usual: o “gaslighting”. Essa atitude
desonesta e criminosa faz com que mulheres – por mais convictas
que sejam – percam a confiança em si mesmas e duvidem de suas
memórias e de fatos vivenciados. Verônica ainda que seja uma mulher
desperta e tenaz – que por vezes será vista como heroína – é
uma mulher que está se fragilizando à medida que é obrigada a
conciliar sua vida pessoal e seu trabalho. Apesar de suas atitudes
serem louváveis, ninguém deveria sair “para a guerra” todos os
dias.
No
entanto, a escrivã segue com a investigação e por meio de sua fala
à imprensa, outras duas mulheres decidem entrar em contato para
realizar uma denúncia. Muitos são os questionamentos à respeito do
porquê grande parte das mulheres vítimas de violência não
denunciam, além da falta de informação sobre como proceder, há
outros motivos que fazem essas mulheres desistirem da denúncia. O
interrogatório de Tânia – uma das vítimas que decidiu denunciar –
exemplifica bem. Percebe-se nessa cena as claras tentativas de
culpabilizar e de descredibilizar a vítima, utilizando -se de
perguntas que não convinham ser feitas. O fato chocante é ver que
tal constrangimento está sendo provocado por uma delegada; uma
mulher. Uma mulher que violenta suas iguais, reproduzindo o machismo
que lhe foi internalizado.
Vemos,
então, a importância da escuta cuidadosa e empática, em que há
respeito e acolhimento às dores alheias, escuta que não dê espaço
para estigmatizações que gerem ainda mais sofrimento.
A
série também retrata, com maestria, Janete. Uma mulher que vive um
relacionamento abusivo, cujo o agressor é um oficial da polícia e
um serial killer . Ela, que é obrigada a participar das atrocidades
cometidas por seu marido, em um determinado momento deve colocar em
sua cabeça uma caixa que permite ver apenas parte do que acontece
por um pequeno buraco. Algo bastante simbólico é o fato da caixa
não ter fechadura ou cadeado, ela pode ser aberta a qualquer
momento.
As
falas enfáticas de seu marido, “ EU sou sua família”, “Você
é a mulher da MINHA vida” e “Você ainda vai ME dar um filho”,
ainda que disfarçadas de cuidado, são carregadas de informações
que indicam que se trata de um relacionamento abusivo.
Assim
como nessa primeira cena, o abusador não se apresenta logo de início
como um monstro, mas qualquer mulher que vivenciou violência
doméstica ou já esteve em um relacionamento abusivo consegue
identificar que há ali uma disfunção, ainda que não consiga
nomear. Em muitas cenas podemos perceber o quanto a violência
simbólica, psicológica e patrimonial são tão cruéis quanto a
violência física, ela destrói brutalmente cada pedacinho de
autoestima e confiança, corrói a ponto de alterar a percepção que
se tem sobre si.
Vemos
em Janete, toda dor e medo comprimidos, cada centímetro. A
anulação de si mesma a ponto de não ser reconhecida, de não ter
mais identidade, tantas concessões não lhe sobrou mais nada. Uma
“passarinha” - como sadicamente é chamada por seu agressor –
que não sabe mais como usar suas asas, e as penas pesam.
Ainda
assim ela abre a caixa. E, a cada vez que a caixa é aberta, ela
consegue enxergar melhor o que de fato está acontecendo. Consegue
ver que não era nela que havia algo de errado e, desperta, tenta
alçar voo.
Ao
ouvir casos como esses, muitos podem ter o ímpeto de culpar e julgar
de diversas maneiras as mulheres envolvidas, mas elas definitivamente
não são as culpadas por entrarem nesse tipo de relacionamento. A
forma como meninas são socializadas as levam à esse tipo de
relação, pois desde o nascimento vai sendo internalizada a ideia de
que precisam de aprovação masculina, precisam ser escolhidas,
precisam de um homem para que se sintam realizadas e sejam validadas
por essa sociedade falocêntrica. Ao mesmo tempo há um esforço
enorme para minar a autoestima dessas meninas para que nunca se
sintam suficientes e merecedoras. Assim, a mulher já entra na
relação vulnerável.
E
como sair ? Como denunciar em uma sociedade em que homens sempre tem
primazia? Assim como foi com Janete, a sociedade continua levando
mulheres – sem nenhum ressentimento – à fogueira.
Assim,
a série desempenha um papel muito importante ao trazer esse tema tão
necessário, de forma tão sensível e crua, à baila.